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Carta de Bernard-Marie Koltès a Hubert Gignoux

Atualizado: 6 de dez. de 2021

Tradução de Rodrigo Ielpo


A Hubert Gignoux, Théâtre National de Strasbourg.



Strasbourg, 7 de abril de 1970.


Caro,


Envio essa carta tanto para deixá-lo a par da evolução do nosso trabalho quanto para responder a algumas observações que você fez ao longo do nosso último encontro –observações às quais a minha lentidão de reflexão me impediu de responder logo em seguida.


Você me falou de formalismo. Na verdade, a razão profunda de um trabalho formal – e que pode surpreender num primeiro contato – é que o personagem psicológico não me interessa – não mais, aliás, que o personagem “razoável” (o que me faz temer Stanislavsky quase tanto quanto Brecht). Procurar nesse texto personagens no sentido tradicional do termo – isto é, combinações mais ou menos complexas de traços psicológicos definidos, e para os quais conviria descobrir em que medida tal traço leva vantagem sobre tal outro, e como um traço se liga a outro, seria uma aposta sem o menor interesse. Diante de um personagem caracterizado psicologicamente, tenho sempre a impressão de me encontrar diante da enésima variação da mesma coisa, fruto de um trabalho obstinado sobre aquilo que há de menor, de mais mesquinho, de menos original em si mesmo. Demandar dos atores o estudo profundo do que eles têm de menos interessante neles próprios me parece aberrante. E nem falemos dos personagens pensados à maneira de Brecht: se os personagens psicológicos são pequenos, estes parecem inexistentes.


Na verdade, as pessoas e os personagens aparecem para mim de uma forma totalmente diferente. O conjunto de um indivíduo e o conjunto dos indivíduos me parecem constituídos por diferentes “potências” que se opõem ou se juntam, e tanto o equilíbrio de um indivíduo quanto as relações entre pessoas são constituídas pelos arranjos entre essas potências. Numa pessoa, ou num personagem, é um pouco como se uma força vinda de cima pesasse sobre uma força vinda do chão, o personagem se debatendo entre as duas, ora tomado por uma, ora tomado por outra. Algumas vezes demos a uma dessas forças o nome de Destino, mas isso me parece esquemático demais – e fácil demais! As relações entre as pessoas é um pouco como dois barcos, cada um colocado num mar revolto, que são projetados um contra o outro, o choque ultrapassando de longe a potência dos motores. Muito além de um caráter psicológico pequeno, cambiante, informe, o que me parece haver em cada ser é esse confronto, esse peso mais leve ou mais pesado, que modela com força e de maneira inevitável uma primeira matéria frágil – e o personagem é o que advém disso, com maior ou menor brilho, com maiores ou menores tormentos, mas de todo modo revoltado, e ainda definitivamente mergulhado numa luta que o ultrapassa.


Tudo isso para tentar explicar um trabalho aparentemente formal – sobre o qual, aliás, tenho o sentimento de não ter exatamente conseguido realizar! – mas através do qual quis primeiramente fixar o importante – o importante sendo aquela posição naquele momento, aquele gesto naquele lugar, aquele olhar naquele outro, entendido ou não, mas imposto não pelos personagens, mas pelas relações que eles trazem em si. Atualmente, isso estando estabelecido, venho tentando, através de um trabalho mais falado, mas explicativo, levar o ator a compreender, a querer, a preencher o gesto desde sempre fixado, ou a fazê-lo lutar contra – o que é um outro modo de dar-lhe um sentido. Certamente, tanto o tempo reduzido quanto meus limites, os limites dos atores, nos impedirão de chegar exatamente – nem perto - ao choque almejado. Mas pelo menos poderemos, assim acredito, permitir ao público entrever um pouco de uma explosão poética, tendo evitado a tentação – e o perigo – psicológica ou intelectual.


E depois, enfim, e sobretudo, Alexis! A chave é pegar esse personagem antes: antes da entrada em efervescência das forças que o rodeiam, vazio, morto, inexistente; e de assistir ao trabalho das potências, de vê-lo constituir-se, despedaçar-se, parir-se, nascer enfim, e, bem por último, viver. Trata-se, ao assistir à composição de um ser real, de assistir à decomposição da psicologia.


Fico aterrorizado pelo fato de ainda não ter podido trabalhar Alexis – mas ainda estou muito preocupado com o resto para encontrar o recuo necessário. Espero, porém, começar em breve. Ainda não posso dizer quando faremos uma passada completa, tendo em vista que não terminamos de arrumar a coreografia. Entretanto, já posso dizer que a data provável da apresentação será o dia 8 de maio (ainda não tenho nenhuma ideia do lugar), e, até lá, espero que você tenha a oportunidade de vir novamente a um ensaio e de me dizer o que você pensa da progressão do trabalho.


Quero te pedir também pra me perdoar pelo tamanho dessa carta: tenho muita dificuldade em aliar clareza e brevidade!


Bernard-M. Koltès.


KOLTÈS, Bernard-Marie. Lettres. Paris: Éditions Minuit, 2009, p.114-116.





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